Como o Mercado Livre tem movimentado o varejo farmacêutico
O Mercado Livre começou a testar terreno em um dos mercados mais regulados do país: o farmacêutico. A notícia de que a companhia adquiriu recentemente a farmácia Target, que opera sob o nome fantasia 'Cuidamos Farma' no bairro do Jabaquara, na Zona Sul de São Paulo, gerou desconforto inicial no varejo farmacêutico. A questão é que entidades que representam o setor, como a Associação Brasileira de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) reforçam o alerta sobre regulação - na primeira quinzena de outubro, a entidade enviou uma representação ao Cade pedindo para reanalisar a compra. Por outro lado, redes tradicionais de farmácias começam a avaliar ajustes estratégicos e especialistas veem o movimento como um gatilho para acelerar a digitalização do varejo. Analistas ouvidos pelo Diário do Comércio apontam que a aquisição pode servir como um projeto-piloto para estruturar vendas diretas de medicamentos isentos de prescrição, aproveitando sua vasta rede logística e base de clientes. Mas é fato que a operação está provocando uma corrida silenciosa por inovação, integração digital e atendimento ultrarrápido, em um cenário em que o consumidor já espera conveniência, rapidez e segurança mesmo para produtos de saúde. Para o especialista em varejo e inovação Alexsandro Monteiro, head do Grupo FCamara, a movimentação do Mercado Livre reposiciona o critério de conveniência na mente do consumidor, e pode redesenhar o mapa de percepção das farmácias tradicionais. “O Mercado Livre já é sinônimo de rapidez e preço competitivo. Ao agregar medicamentos de venda livre, ele passa a disputar share of mind (lembrança de marca) nas compras de reposição e prevenção.” Para ele, a entrada do marketplace impacta diretamente consumidores digitais de 25 a 45 anos e produtos de alta rotação, como analgésicos, vitaminas e dermocosméticos. “Esses públicos tendem a migrar rapidamente para soluções digitais. Quando o consumidor percebe que pode receber um medicamento em horas, dentro do mesmo aplicativo em que compra eletrônicos ou roupas, a farmácia de esquina perde relevância simbólica.” Mesmo assim, o especialista lembra que redes como Raia, Drogaria São Paulo, Drogasil, Pague Menos e Panvel mantêm vantagens estratégicas - especialmente a credibilidade no atendimento farmacêutico e a presença física em momentos de urgência. “Essas marcas carregam confiança construída ao longo de décadas. Mas se não digitalizarem radicalmente e integrarem físico e digital de forma fluida, verão erosão gradual de market share, especialmente em produtos de conveniência e bem-estar.” A questão central, segundo Monteiro, não é se as farmácias perderão clientes, mas quanto tempo levarão para reagir. Movimentos defensivos tardios custam caro. Logística A combinação de logística própria e inteligência de dados do Mercado Livre estabelece um novo padrão para o setor. “Receber um analgésico em até duas horas, com frete incluso, redefine a urgência", afirma Monteiro, que destaca ainda o uso intensivo de dados como diferencial competitivo. “O Mercado Livre prevê o consumo, produto a produto, por região, ajusta preços conforme a elasticidade e envia ofertas no momento exato da recompra.” As farmácias tradicionais, com promoções genéricas e CRM limitado, acabam parecendo antiquadas. Rastreamento minuto a minuto, tempo de entrega preciso e resolução automatizada tornam inaceitáveis respostas como ‘não temos estoque’, alerta. “As redes físicas precisarão investir em estoque em tempo real e logística urbana para não parecer lentas — e, em última análise, dispensáveis.” Oposição A compra foi feita por meio da K2I Intermediação, empresa ligada à Kangu, braço logístico do grupo argentino. A operação, aprovada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), sinaliza o interesse do Mercado Livre em avançar no comércio de medicamentos — regulada pela Anvisa, que exige licenças sanitárias e presença física para funcionar legalmente. Por isso a aquisição da farmácia. Há pouco mais de dez dias, o Cade abriu um procedimento para apurar alegações da Abrafarma. Em nota assinada pelo presidente da entidade, Sérgio Mena Barreto, a Abrafarma afirma que o Mercado Livre não teria detalhado todas as informações sobre a compra e possíveis parcerias futuras - o que poderia afetar a concorrência. “A operação não pode gerar sobreposição horizontal no varejo farmacêutico nem integração vertical entre o comércio de medicamentos e o marketplace de multiprodutos, por envolver autorizações regulatórias específicas. A compra pode, inclusive, aproximar no futuro as atividades do Mercado Livre na venda online de medicamentos com as operações da ex-controladora da farmácia, a Memed, maior plataforma de prescrições médicas digitais”, destacou Barreto. Reação Mesmo diante da pressão que o marketplace possa causar, Monteiro acredita que as redes físicas ainda têm espaço, desde que acelerem sua transformação. O Diário do Comércio também tentou repercutir o assunto com algumas redes de farmácias, mas elas preferiram ainda não comentar. “As farmácias competem, mas apenas se deixarem de ser um ponto de venda e passarem a atuar como plataformas de saúde e bem-estar. O diferencial está no atendimento farmacêutico especializado, aliado à urgência real e à experiência omnichannel”, acredita Monteiro. Para ele, o farmacêutico pode se tornar um consultor de saúde, oferecendo orientação sobre uso de medicamentos e interações. A entrega ultra rápida, em até 15 minutos, e a integração com aplicativos de entrega são diferenciais competitivos. Já a experiência precisa ser fluida: o cliente compra pelo aplicativo, retira na loja e acumula pontos no mesmo programa de fidelidade. Parcerias com health techs são outro fator estratégico. As farmácias que se integrarem a plataformas de telemedicina e exames rápidos podem criar hubs de saúde locais, com atendimento remoto e assinaturas de medicamentos de uso contínuo. “O Mercado Livre não pode — e não deve — substituir o papel clínico do farmacêutico. Mas quem insistir no modelo tradicional de balcão e prateleira perderá mercado rapidamente.” O que diz o Mercado Livre Do outro lado, o Mercado Livre tem defendido que a operação é legítima e não representa risco concorrencial, tratando-se apenas de uma aquisição estratégica de pequeno porte. Em nota enviada ao Diário do Comércio, o Mercado Livre reforçou que atua sempre em conformidade com a legislação vigente, incluindo a RDC 44/2009. Em relação às alegações da Abrafarma, ressalta que ainda não atua na venda de medicamentos em seu marketplace, e que a comercialização desses produtos é proibida em nossos termos e condições. “O Mercado Livre não tem planos de criar uma rede própria de farmácias e de telemedicina, e sim trabalhar com parceiros; não existe a alegada integração vertical. A aquisição é restrita à Cuidamos Farma. Atualmente, não há nenhum contrato ou parceria adicional sendo negociada entre o Grupo Mercado Livre e a Memed S.A.” A nota ainda ressalta que a plataforma enxerga que o mercado e a tecnologia evoluíram profundamente desde a publicação da resolução RDC 44/200 e é natural que o marco regulatório também evolua para refletir essas transformações. “Nossa meta é colaborar com os órgãos reguladores, como a Anvisa, para que a legislação reflita expressamente a realidade tecnológica atual, garantindo a venda de medicamentos de forma segura e acessível no ambiente digital." Há cerca de duas semanas, Fernando Yunes, vice-presidente sênior do Mercado Livre no Brasil, Tulio Landim, diretor sênior de marketplace, e Adriana Cardinali, diretora jurídica de e-commerce no Brasil, reuniram a imprensa em uma coletiva para esclarecer os planos da companhia para o setor farmacêutico após a aquisição da Cuidamos Farma - o que não implica abrir uma rede própria de farmácias para verticalizar o setor, e sim "colaborar com as associações e reguladores para que a venda por marketplaces aconteça com segurança", destacou o vice-presidente. Futuro Para o analista de mercado Ricardo Alvarez, diretor geral da Alvarez Consultoria, o ponto de virada está na regulação. O rumo desse movimento dependerá diretamente das decisões da Anvisa e do Conselho Federal de Farmácia. Ambos os especialistas acreditam que, se o marco regulatório continuar rígido, as redes tradicionais ganham um respiro — e precisariam usar esse tempo para modernizar seus modelos. “Mas esse respiro precisa ser usado estrategicamente: investir em digitalização, logística e experiência do cliente será decisivo para não ficar atrás quando as regras mudarem”, completa Alvarez. A movimentação do Mercado Livre funciona como um alerta para o setor. Não se trata apenas da chegada de um novo player, mas de um sinal de que o varejo farmacêutico precisa se atualizar. As empresas que enxergarem essa mudança como oportunidade poderão dar um salto. As que insistirem em esperar podem ficar para trás antes mesmo de perceber.
“Podemos ver uma rápida mudança no ambiente competitivo se houver abertura para o comércio digital de medicamentos sujeitos a controle. Isso pode redefinir a forma como as redes se relacionam com o consumidor, acelerar a inovação e até alterar preços e formatos de entrega.”